Por Els Lagrou, professora titular de antropologia da UFRJ, propõe, através da filosofia ameríndia dos Huni Kuin, uma original leitura cosmopolítica do novo coronavírus, especialmente atenta às variadas formas de convívio e relação entre humanos e não humanos.

Os Huni Kuin do Acre e do Leste da floresta amazônica peruana compartilham com muitos outros povos indígenas da região uma filosofia de vida que poderíamos chamar de ecosófica e que atribui a maior parte das doenças ao fato de comermos animais. As pessoas adoecem porque a caça e os peixes, mas também algumas plantas que consumimos e outros seres que agredimos ou com os quais interagimos, se vingam e mandam seu nisun, dor de cabeça e tonteira que pode resultar em doença e morte.

O xamanismo e o uso de plantas psicotrópicas, como tabaco e cipó, servem para descobrir a ação destes agentes invisíveis e de contra-efetuar, através do canto, do sopro, de perfumes e plantas medicinais, o movimento de captura do espírito da vítima por parte dos duplos dos animais mortos. O universo da floresta é, assim, habitado por uma multiplicidade de espécies que são sujeitos e negociam seu direito ao espaço e à própria vida. Neste universo a cosmopolítica dos humanos consiste em matar somente o necessário e em negociar com os donos das espécies ou com os próprios duplos dos animais. Tem-se a aguda (con)ciência de que para viver é preciso matar e de que toda ação, toda predação, desencadeia uma contra-predação.

Quando a quarentena foi anunciada no Brasil, meu amigo, o líder de canto do cipó, Ibã Sales Huni Kuin, se despediu por telefone: “Vamos nos retirar na floresta, vamos ficar quietos e não vamos deixar mais ninguém entrar, porque tudo isso é nisun”. Nada sabia, ainda, sobre as hipóteses de causa do novo vírus, que apontam de fato para o nisun de outras florestas. E apesar do nome dado aos Huni Kuin pelos seus inimigos ser Kaxinawa, povo morcego, não consomem estes animais porque os consideram seres que possuem yuxin, o poder de transformar a forma. O que pode um vírus, no entanto, Ibãe seus parentes indígenas sabem muito bem. Pois vírus importados, como a influenza e a varíola, causaram, no passado, mais mortes na sua população do que as guerras travadas contra eles na época de invasão de suas terras.

A narrativa científica mais aceita do momento, pelo que conseguimos deduzir da literatura disponível e de livre acesso durante a pandemia, atribui o novo corona à passagem do vírus de uma espécie de morcego (horseshoe bat) que vive nas florestas Chinesas para o ser humano. A hipótese se baseia no sequenciamento do genoma do vírus do COVID-19 e suas grandes semelhanças com um coronavírus presente nestes morcegos. Outro animal que hospeda um vírus geneticamente muito similar é o pangolim, um tipo de tatu asiático muito apreciado por grande parte da população chinesa como iguaria e remédio. Uma das hipóteses é que este poderia ter sido o hospedeiro intermediário do vírus entre o morcego e o humano[iv]; as últimas pesquisas, no entanto, afirmam que o vírus do morcego é mais próximo do COVID-19 do que aquele encontrado nos pangolins. Ambos os animais são consumidos na China e em outros países asiáticos. Os primeiros casos do novo corona vírus foram detectados em um grande mercado de Wuhan na China, onde se vende animais selváticos vivos, entre os quais morcegos e muitos pangolins, apesar de sua captura e comercialização serem proibidas.

Seguir leyendo en https://jornalistaslivres.org/nisun-a-vinganca-do-povo-morcego-e-o-que-ele-pode-nos-ensinar-sobre-o-novo-coronavirus/

A série Pandemia, Cultura e Sociedade é uma parceria do Blog da BVPS com a revista Sociologia & Antropologia (PPGSA/UFRJ).